O Valente Soldado Chveik

Nessa altura, a viúva de um general de infantaria, a Baronesa von Botzenheim, estava muito, muitíssimo preocupada em descubrir o soldado sobre o qual o “Boémia” recentemente tinha publicado uma notícia de como ele, aleijado, deixou-se conduzir numa cadeira de rodas, gritando: Para Belgrado!, dando esta manifestação de patriotismo origem ao apelo da redacção do “Boémia” aos seus leitores para que realizassem peditórios a favor do leal herói-aleijado.

Por fim, ao indagar junto da Directoria da Polícia verificou-se que se tratava de Chveik e a partir daí tornou-se fácil procurar. A Baronesa von Botzenheim levou consigo a sua dama de companhia e o mordomo com um cabaz e foram a Hradcany.

A coitada da senhora baronesa não fazia ideia que significava quando alguém estava internado no hospital militar da prisão da guarnição. O seu cartão de visita abriu-lhe as portas da prisão e no escritório trataram-na com muita amabilidade e passados cinco minutos já sabia que “der brave Soldat Chveik”, pelo qual tinha perguntado, encontrava-se no pavilhão 3, cama 17. Quem vinha com ela era o próprio Dr. Grünstein, todo baralhado.

Chveik nesse momento estava sentado na cama, após a habitual caminhada diária, prescrita pelo Dr. Grünstein, rodeado por um grupo de simuladores esqueléticos e esfomeados que ainda não se tinham rendido, lutando com afinco com o Dr. Grünstein no campo da dieta total.

Quem os ouvisse ficaria com a impressão de que tinha ido parar  no meio de gastrónomos de uma escola superior de culinária ou num curso de acepipeiros.

“Até os ordinários torresmos de sebo acabam por se poder comer,” estava precisamente a contar um que se encontrava ali com um ´antigo catarro gástrico´, “quando estão quentes. Quando o sebo está a derreter, espremem-se até ficarem secos, põe-se sal e pimenta e deixem que vos diga que nem os torresmos de ganso lhes chegam aos calcanhares.”

“Não toque nos torresmos de ganso”, disse o homem com ´cancro do estômago´, “não há como os torresmos de ganso. Até parece que é possível compará-los com os de banha de porco. É claro que têm de ficar fritos até ficarem dourados, como fazem os judeus. Pegam num ganso gordo, esfolam a pele com a banha e fritam aquilo.“

“Sabe uma coisa? Está enganado quanto aos torresmos de porco,” comentou o homem ao lado de Chveik, “naturalmente estou a falar de torresmos de banha caseira, os chamados torresmos caseiros. Nem de cor castanha e nem tão pouco amarela. Deve ser qualquer coisa entre as duas cores. Um torresmo não deve ser nem muito mole nem muito duro. Não pode estalar, assim estaria queimado. Deve derreter-se na língua e não pode ficar-se com a impressão que se tem banha a escorrer pelo queixo.”

“Quem é que já comeu torresmos de banha de cavalo?” ouviu-se a voz de alguém, mas não obteve resposta porque nisto entrou a correr o sargento do serviço sanitário:

“Todos para as camas, vem aí uma arquiduquesa, e não quero ver os pés sujos de ninguém!”

Nem uma arquiduquesa entraria com tanta autoridade como o fez a Baronesa von Botzenheim. Atrás dela movia-se toda uma procissão em que não faltava sequer o sargento-contabilista do hospital que via nisto tudo a mão oculta de uma inspecção que o atiraria do farto manjedouro na retaguarda para a mercê das granadas algures por debaixo dos obstáculos de arame farpado das trincheiras.

            Estava pálido, mas ainda mais pálido estava o Dr. Grünstein. Perante os seus olhos dançava um pequeno cartão de visita da baronesa com o título: “Viúva de General” e tudo aquilo que poderia estar ligado a esse título, como conhecimentos, favoritismo, queixas, uma transferência para a frente e outras coisas terríveis.

            “Aqui temos o Chveik,” disse, mantendo uma calma artificial, ao levar a senhora Baronesa von Botzenheim para junto da cama de Chveik, “porta-se com muita paciência.”

            A Baronesa von Botzenheim sentou-se numa cadeira que puseram para ela ao lado da cama de Chveik e disse:

            “Soltato tcheco, bome soltato, kripelsoltato ser soltato brafo, gostar muito austríaco tcheco.”

            Ao mesmo tempo passava a mão pela cara de Chveik com a barba por fazer, e continuou:

            “Eu ler tuto em chornal, eu trasser para si papar, masticar, fumar, jupar, soltato tcheco, bome soltato. Johann, kommen Sie hier!”

            O mordomo, cujas suíças eriçadas lembravam o bandido Babinsky, puxou o volumoso cabaz para junto da cama, enquanto a dama de companhia da velha baronesa, uma dama alta com cara de choro, sentou-se na borda da cama de Chveik, ajeitando-lhe a almofada de palha por trás das costas, com a ideia fixa de ser isso uma coisa adequada a fazer aos heróis doentes.

            A baronesa entretanto tirava os presentes do cesto. Uma dúzia de frangos assados embrulhados em papel de seda cor-de-rosa e atados com uma fita de seda preta e amarela, duas garrafas de um qualquer liquor de guerra com o rótulo “Gott strafe England!” Na parte de trás encontravam-se Francisco José com Guilherme, de mãos dadas, como se quisessem jogar o jogo para crianças “Na sua toca, o coelhino estava sentado sozinho, o que é que tens coitadinho, que não podes pular nem um bocadinho”.

            Depois tirou do cesto três garrafas de vinho para convalescentes e dois maços de cigarros. Dispôs tudo com elegância sobre a cama vazia ao lado de Chveik, acrescentando ainda o livro encadernado “Relatos da Vida do Nosso Soberano”, escrito pelo actual chefe de redacção galardoado do nosso jornal oficial “A República Checoslovaca” e que na altura ainda se revia no velho Francisco José. Depois apareceram na cama embalagens de chocolate com a mesma inscrição “Gott strafe England!”, de novo com retratos dos imperadores austríaco e alemão. No chocolate já não seguravam a mão um do outro, remetendo-se cada um para o seu lado, mostrando as costas um ao outro. Coisa bonita era uma escova de dentes de duas filas com a inscrição: “Viribus unitis” para que todos ao lavarem os dentes se lembrassem da Áustria. Prendinha elegante e muito conveniente para a frente e para as trincheiras era um conjunto para limpar as unhas. Na caixa estava uma gravura de uma granada a rebentar e um homem a lançar-se para a frente de baioneta calada. Por baixo lia-se: “Für Gott, Kaiser und Vaterland!” Havia ainda um pacote de bolachas, este sem gravuras, porém com rimas:

Österreich, du edles Haus,

Steck deine Fahne aus,

Lass sie im Winde wehen,

Österreich muss ewig stehen!

 

com a tradução para checo, colocada no verso:

Áustria, casa nobre,

Ergue tua bandeira,

Deixa-a voar ao vento

Áustria sempre firme.

A última prenda era um jacinto branco num vaso.

Quando tudo ficou desembrulhado na cama, a Baronesa von Botzenheim não conteve lágrimas de emoção. A alguns simuladores esfomeados corria-lhes saliva da boca. A dama de companhia segurava Chveik sentado e também vertia lágrimas. Estava silêncio como na igreja, interrompido de repente por Chveik de mãos juntas:

“Pai Nosso, que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso reino… perdoe-me vossa mercê, eu queria dizer: Deus, Pai do Céu, abençoai-nos estas dádivas que graças à Vossa generosidade usufruiremos. Amen!”

Proferidas estas palavras, pegou num frango e atirou-se a ele, seguido com o olhar assustado do Dr. Grünstein.

“Ah, o soldadinho está com tanto apetite,” disse a velha baronesa baixinho e com entusiasmo ao Dr. Grünstein, “com certeza que já está de boa saúde e pode ir para o campo de batalha. Estou deveras  muito contente como lhe está a saber tão bem.”

E depois andou de cama em cama, distribuindo cigarros e bombons de chocolate e no fim regressou de novo para junto de Chveik, fez-lhe uma festa no cabelo com as palavras: “Behüt euch Gott“ e saiu com a procissão toda pela porta fora.

Antes de o Dr. Grünstein tornar a subir, depois de acompanhar a senhora baronessa, Chveik distribuiu os frangos que foram devorados pelos doentes com tal velocidade que em vez de frangos o Dr. Grünstein encontrou apenas um monte de ossos, roídos tão limpamente como se os frangos tivessem caído vivos num ninho de abutres e os seus ossos roídos tivessem estado expostos durante vários meses a torrar do sol.

Também desapareceu o liquor de guerra e as três garrafas de vinho. Perderam-se nos estômagos dos doentes também as embalagens de chocolate e o pacote de bolachas. Alguém chegou a beber o frasco de verniz para as unhas que se encontrava dentro do conjunto e trincou a pasta de dentes que acompanhava a escova.

Quando o Dr. Grünstein voltou, pôs-se de novo numa pose combativa e teve um longo discurso. Tinha-lhe saído um peso do coração por a visita já se ter ido embora. O monte de ossos roídos corroborou a sua ideia de que eram todos uns incorrigíveis.

(Tradução: José e Anna Almeida)